sábado, 17 de dezembro de 2011

Prosas Que o Mundo Dá XXXVI


Introspecção
 
Enquanto escrevo estas linhas você dorme profundamente ao meu lado. O sono dos anjos, como lhe disse uma vez e você me exibiu um sorriso discreto, mas carregado de felicidade; uma paixão moderada, contida. Em retrospectiva, penso que este foi o momento em que verdadeiramente a conquistei e fui conquistado. Estávamos bêbados e paramos no primeiro motel que apareceu no caminho. Foi uma transa suja, sem amor: um casal de bestas buscando prazer próprio e dominação sobre o outro. Inusitado, mas fantástico.
Como você sempre foi mais resistente ao álcool que eu, mantive-me acordado a noite toda, nauseado. Entorpecido ou não, pude admirá-la em seu sono, velá-lo como um marinheiro - aliás, melhor um pirata, que são mais propensos à bebedeira e à honestidade – em mar tranquilo. Sentir sua barriga inchar e esvaziar como uma bexiga macia em minhas mãos é uma sensação que nunca esqueci, e embora eu não fale isso mais, busquei-a quase todo o tempo. Sinto muito, aliás, que você fale sobre o quanto está engordando quando pousava minha mão sobre sua barriga, mas garanto que essa era a menor de minhas preocupações.
Voltando àquela noite, lembro do seu respirar profundo, pausado, tranquilo, como se nada pudesse atingí-la. Como se eu fosse o seu primeiro e eterno protetor...
Recordo do seu sorriso de satisfação em pleno sono. Sempre tive a curiosidade de saber se sonhava alguma coisa e o quê, mas achei que seria precipitado demais perguntar no dia, e depois pareceu tolo; provavelmente você sequer lembra. Mas cogitei tantos sonhos!
Duas horas depois, você abre os olhos em profunda paz, como se tivesse hibernado por dias e se recuperado de todo o cansaço que vinha me dizendo há dias. Me vê ao seu lado, observando-a, e me dirigiu aquele sorriso sincero, de quem ficou realmente feliz de acordar e me ver ao seu lado. Senti-me amado, finalmente.
Mas ainda com enjoos, o que provavelmente fez com que você me perguntasse se estava tudo bem; afinal, biologicamente, é comum o homem dormir primeiro. Mas parece que a biologia não está apta a explicar a fusão álcool e paixão no sono de um homem, principalmente um incomum.
- Sim, só estou um pouco enjoado, não consigo dormir – disse, tentando acobertar minha paixão. Você fez um carinho em meu rosto. “Logo vai passar, me
abrace e tudo ficará bem”, disse-me, com uma doçura encantadora na voz que me fez arrepender por tentar ser tão racional nestes momentos.
Continuei não conseguindo dormir, e isso cada vez menos se explicava pelo vinho. Aos poucos, ouvia-se o piar alucinado dos pássaros, indicando a chegada da manhã. Até então iluminada por uma luz baixa, o sol penetrava mansamente na janela do quarto, revelando cada parte sua com amorosa parcimônia, dos pés aos quadris. Seu busto e rosto continuavam na sombra, até o novo abrir de seus olhos, que parecem ter iluminado tudo ao redor e explodido por combustão todos os males que vivi até então. Seu olhar acabou comigo, atingiu a mais ínfima parte de meu corpo, como se eu não tivesse mais nada a esconder e você aceitasse isso de bom grado. Voltou a sorrir-me e perguntou, verdadeiramente preocupada, se o enjoo havia passado.
- Não era o enjoo que me impedia de dormir, me desculpe por mentir. Eu estava velando seu sono, tão profundo que parecia que você dormia nas nuvens. O sono dos anjos. – meu corpo já ardia tanto que uma frase que eu consideraria normalmente tola soou verdadeira, plausível. Eu realmente acreditava que você estava nas nuvens, comigo acompanhando-a. Você tocou meu rosto, dirigiu-me este sorriso tímido carregado de significados que só você tem, acariciou minha nuca, me beijou e encaixou seu corpo no meu.
Tenho certeza que lembra-se disso com a mesma ternura que eu. Quero que assim seja para todo o sempre. Também gostaria de entender o que vem acontecendo, mas isso foge à compreensão. Biologia, filosofia, psicologia, antropologia... nenhuma delas nos faz entender dilemas e miudezas tão particulares. Não importa o que tenhamos em comum com a humanidade; tudo o que aconteceu entre nós é e foi único e, portanto, de difícil compreensão. Talvez tenha apenas cumprido sua validade.
De qualquer forma, por esta carta, despeço-me, esperando que logo possa navegar em mares tranquilos, com um genuíno capitão que possa conduzí-la em brisas serenas. Eu? Bem, eu preciso encontrar as estrelas certas que me guiarão neste reencontro de mim mesmo. 

A. O.


Siga: @RaulGimenez 

Leia mais: A chuva na janela

2 comentários:

  1. Tão bonito Raul!!!Fiquei sem palavras outra vez....Obrigada, querido por compartilhar tanta beleza e doçura com a gente!!!Fiquei por alguns minutos encantada e emocionada...Que venham as estrelas para te guiar sempre e enquanto elas não vem, se guie pelo clarão da lua, sua eterna amiga.Bjs...

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  2. Tão bonito Raul!!!Fiquei sem palavras outra vez....Obrigada, querido por compartilhar tanta beleza e doçura com a gente!!!Fiquei tão encantada com este texto.E espero que voce encontre as estrelas que te guiarão para o encontro de si mesmo e novos sonhos...E saiba, querido que toda essas estrelas que passam por nossa vida sempre deixam uma parte de suas luzes e nos tornam assim seres mais iluminados e mais ricos...

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