terça-feira, 4 de outubro de 2011

Amor em pares: Sobre Laura e Arthur XIV

 

Em Contagem Regressiva

Acordar... Cadê a respiração? Cadê o ar? O velho acordou e não encontrou a menina, a mulher... O velho acordou e não encontrou Laura... O coração apertou, o pesadelo consumou-se no abismo de mais um despertar matinal. E todo dia era assim... Ele sonhava que caminhava por sobre a areia e, de repente, sem nenhum sinal, não havia mais chão, apenas a queda livre... O velho grande homem acordava, mais uma vez, com a ânsia de gritar e a impossibilidade de fazê-lo em sonho. Olhando ao redor, e percepção da sala pelos olhos embaçados era quase ideal. Mais um piscar, a normalização da respiração... e a quase lucidez o visitou. De alguma forma percebeu que havia um lugar para onde voltar. Ele tentara tanto encobrir os vazios e enchera tanto o seu mundo de coisas, porque sentir machucava demais e, agora... Agora, a mente permitia-se sorrir por um instante... O exato instante em que recordava a sua menina cantarolando, no dia anterior, ao barulho das gotas d'água que chiavam ao cair do chuveiro... A porta entreaberta do quarto dela era quase que um convite. Ele sabia que não era certo entrar, que iria ser invasivo, mas não resistiu... A cama desarrumada, as roupas arremessadas sobre ela, a gaveta da cômoda entreaberta... Tudo isso denunciava que ela saíra com pressa naquela manhã... Ao aproximar-se da gaveta da cômoda para fechá-la, entre os tecidos desordenados e as malhas descuidadas avistou parte de um caderno pequeno. A consciência gritou estridentemente "NÃO FAÇA ISSO!!!" ... Mas, as mãos agiram mais rápido, sem pensamento que as detivesse... Ele chegou as últimas páginas escritas. Os olhos correram apressados pelas linhas bem escritas e as palavras redondas da caligrafia de Laura...

"Os dias reduzindo, passando, sumindo... De onde pra onde ninguém sabe... De onde pra onde ninguém viu... Acreditar em algo maior sempre implicou em acreditar no que pressinto desde sempre... Desde que a primeira dor me visitou... Sensações? De que há uma vida curta, de que os dias contados diminuem progressivamente... Sempre tive sonhos e certezas de uma passagem breve por este plano e, então, os olhos se admiraram dele... A poesia, a palavra, o violão... Declarando um amor pelo mundo e pela brevidade dos instantes... Potencializar momentos. Se, hoje, tenho urgência, talvez a culpa seja minha, talvez a culpa seja de cada ferida física e psicológica que se instaurou em mim... Mas, o tempo, este macula minhas esperanças, minhas urgências, meus vazios ou dores... Eu não sei mais diferenciar um do outro... A notícia que não era esperada apossou-se dos espaços vivos que ainda restam de mim. As facas cirúrgicas frias perseguindo cada pedaço que ainda respira melhor. Elas voltam em delírios durante a madrugada ou enquanto eu penso que estou acordada. Elas agridem a alma com lembranças dos flashes anestésicos. Mas, não há como evitar, como correr, como fugir... Estão ali os papéis que analisam a minúscula parte retirada de mim e o homem de branco que fala pausadamente... Apenas uma pequena incisão, ele repete como um mantra... E eu repito para o mundo... Mas, a repetição não me convence... Eu já trilhei essa estrada, conheço os sinais, conheço cada palavra... Eu finjo que o corpo é forte e que a alma é otimista, mas sem dar o primeiro passo, mais uma vez eu volto à infância... Aos 9 anos ou aos vinte e tantos, eu já conheço o próximo degrau dessa escada. Sei que a cada investida química eu estarei ainda mais escondida dentro de mim mesma. Sei que a cada ânsia, desmaio, palidez... eu me sentirei mais sombria, mais escura, mais sozinha... Direi a todos os que houverem ali que o tempo dá jeito, que tudo dará certo, mas as palavras repetidas não me convencerão... Haverá um caos previsível dentro de mim... Haverá ainda mais urgência, mas no final do dia ou da estrada ninguém compreenderá... No final do dia, talvez a moldura do rosto tenho escorrido como areia movediça e os olhos estejam lacrimosos. Não haverá contornos negros ao olhar e, nem mesmo, esmalte negro a encobrir as unhas. Tudo estará tão pálido, triste e só, quanto sempre esteve. As paredes brancas denunciarão outros espaços, sem fotografia a me vigiar, sem telas mágicas a revitalizar meus sonhos... O corpo sucumbirá, novamente, por algum tempo e, talvez, o próprio tempo se esvaia nesse sucumbir. Queria terminar, agora, como uma moça feliz que desperta de um pesadelo qualquer. Mas, já não sou tão moça... Como não fui menina por tempo o suficiente... Não há sono de que despertar. O pesadelo é mais real e mais desperto do que qualquer página que eu escreva. Queria dizer que eu não tenho pressa e que o meu tempo é todo seu, mas a minha urgência sabe que não tenho mais tanto tempo assim".

Na medida em que as linhas foram se esgotando, a dor foi rasgando a alma do grande homem como as garras de um animal noturno, como os dentes vampirescos dos predadores reais... Em posição fetal, o choro compulsivo anestesiou a culpa que ele sentia, sobre a cama de sua menina. Ela estava morrendo...Os velhos fantasmas visitavam-na novamente... Ele conhecia esses fantasmas e a dor da menina ao ver os cabelos negros caindo, fio a fio, um a um, enquanto a química maltratava-lhe a alma... E ele que julgava, agora, estar recuperando o tempo perdido... A menina não tinha mais tempo a perder... Caminhava Laura em contagem regressiva e nada dissera...

Respirar... Cadê a respiração? Cadê o ar? Cadê o tempo que não volta mais?

O velho, agora, sabia... Não era a alma da menina que enegrecia e, sim, o seu tempo que escoava silenciosamente, enquanto ela cantava no chuveiro e tentava ser melhor.

"Porque o silencio em si é como o som dos diamantes que podem cortar tudo!!!" (Jack Kerouac)

Escrita por Darla Medeiros e postada por Jaquelini H. Medeiros*

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