quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Três Pontos Negros XV

 

O que é que há?

Talvez, ela até já esteja dormindo... Olho tantas vezes para o mesmo olhar de tom castanho e familiar... Chego a esfregar os olhos com as juntas dos dedos, como que para tentar despertar da miragem que se coloca à minha frente. É inútil... Ela ainda está ali, mesmo após muitos esforços para fazê-la ir... Reflexo... Espelho... Correntes de uma redoma invisível... Ela ainda está ali entre papéis, tesouras, pedras e palavras voadoras... Ela ainda está ali sussurrando facas, recriando bombas, inventando amores... Ela ainda está ali... O papel certo para o teatro errado... Atos demais em peças de menos... O reflexo, feito flecha mal atirada, está ali... Ela sou eu... Talvez, sejamos duas...Talvez, sejamos uma... Ela: menina, triste e sem vontade de agir, inerte... Eu, nem tão menina assim, de olhos acesos, buscando detalhes, histórias, lugares, boas novas para sentir... A menina flutua por entre os cômodos da casa, brinca de pular no colchão, da cama sempre grande demais, para tão pouco de mim que ainda abriga... Ela sorri, ela gesticula, fala, sente... Ela é tão pequena, parece tão frágil, tão dócil, tão incapaz de qualquer crueldade... Vinte e três horas e vinte e três minutos em qualquer relógio de horas iguais... Sem nem lembrar porque dei para reparar nessas igualdades, somas, ações numéricas... Ela, menina, adormecida em meu colo, sorrindo e sussurando palavras inaudíveis... Ninguém pode entender porque a criança me causa tanta comoção... Ninguém poderá entender porque o amigo fora meu porto mais seguro durante a infância e, agora, ser o porto seguro dela é parte da missão que me cabe... Missões em jogos de iludir e folhas de histórias sem começo e sem fim, amareladas pela ação dos anos que nunca perdoaram nada, nem ninguém... A menina e a minha estrada... Partes desgovernadas de um coração que se alegra pelas histórias bem contadas... Partes sentimentais de um mesmo processo de tentar amenizar as dores do outro... A menina, o reflexo ausente do amigo de infância, as dores em horas iguais, as crônicas e palavras de Ana... Aprisionando-se em imagens, as sensações de uma poeta distante... As farpas da acidez de um gosto musical nas mãos de tantos outros... Filosofia pop nos bares do mundo, poesia em prosa nas páginas do livro negro, olhos cansados na luz do improvável... Recolho os cadernos surrados de uma adolescência obcecada por escrita e leitura, amores impossíveis e cálculos com letras e nomes... Abro gavetas que permaneceram fechadas, por alguns meses que pareceram séculos... Recomponho as músicas perdidas desde um tempo remoto do qual já não posso compor memória... O reflexo deveria ser o mesmo, mas o espelho que permanece imóvel denuncia as mudanças menos evidentes... Não sou a mesma criança, a mesma menina, a mesma mulher... Tenho calos nas mãos, hematomas na alma, palavras guardadas por infinitos dias, fotografias que não foram recortadas em jornais de folha, pôsteres que fiscalizam minha respiração... Quase estamos á deriva, quase somos felizes, quase foi por acaso que esbarrei na felicidade de um momento maior, quase... Quase não passou de um sussurro, quase parecia apenas reflexo... Éramos quase maiores que os pontos de vista externos, quase mais fortes que a nossa dor, quase mais corajosos do que a nossa covardia, quase mais reais que os nossos jogos de iludir... Éramos quase irmãos, mas o tempo perfaz a distância... Èramos os melhores amigos antes que fios azuis fizessem de você uma entrelinha... Adormece a menina em meu colo... Não é nenhuma parte de mim, não carrega meu sangue, não tem meus traços, mas lembra você... Ela nem lembrará do seu rosto, nem da sua voz, nem das suas brincadeiras... Não terá a menor ideia de quem você foi de verdade... Se é que existe alguma verdade naquilo que parecemos ser... Dorme, criança... Outro dia há de trazer os doces que ele te prometeu... Outro dia há de te permitir as travessuras de que ele riria... Dorme criança... A falta de ar levou o seu criador, mas ainda tens meu colo em que se aconchegar... 


 

"Esqueça seus heróis que figuram assexuados nos pôsteres do teu quarto, fazendo poses, inventandos estilos, invertendo razões".

3 comentários:

  1. Poderia eu perguntar de onde saiu esta última frase entre aspas? É sua?
    Como sempre tens as palavras que fazem a leitura mais prazerosa.
    Abraços do Prof. Josê Antônio.

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  2. A menina, um dia, saberá que você estava ao lado dela, como esteve ao lado do pai. Parece que foi ontém, mas meio ano já se passou. Certos amigos vão embora, mas deixam o caminho bonuto pelo qual trilharam. Lindo texto.

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  3. Querido, Professor... Esta frase estava anotada em um dos meus cadernos, mas não discriminei o autor quando a anotei, por isso, não o mencionei. Sabe quando a gente anota no primeiro lugar que passa pela frente algo que chama a nossa atenção? Tenho essa mania... Obrigada pelas palavras sempre gentis... E, Líbia, esta é uma daquelas feridas que não cura com o tempo, a de ver o amigo de infância partir pra nunca mais voltar, mas, sim, com o tempo a gente aprende a enxergar o caminho que ele trilhou e, não, o destino que o aguardava.

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