sábado, 20 de agosto de 2011

Partes de Mim XXIV


Perto Demais das Capitais

Ele era um homem de poucos amigos e raros amores... Apaixonava-se todos os dias, mas poucos sentimentos duravam mais que uma semana e quando duravam... Ah... Ele podia perder-se em cada palavra desferida à folha branca como um golpe de espada... A bem da verdade, ele mal lembrava do que era a folha branca, tão preso à tecnologia das facilidades e confortos... Ele era tão somente um dos tantos Josés de nome comum que perambulam nas cidades grandes sem serem notados e nem se apercebia de que isso não lhe importava muita coisa... A sensação da indiferença nos olhos foscos das pessoas apressadas que cruzavam a Paulista apenas aguçava ainda mais a sua introspecção... Da manhã, o trabalho... Da tarde, o trabalho... Da noite, o trabalho... Já nem sei ao certo se ele vivia, mas tenho certeza de que trabalhava... No desencontro das refeições e das palavras dialogadas, a certeza de que a cabeça por explodir era uma fuga pra não perceber o quão vazio era o espaço que se ocupava da atitude mecânica e a justificava como prazer... Esqueceu o moço, velho, homem, pai, amante, amigo de poucos... Esqueceu que preencher espaços vazios com qualquer coisa pode ser ainda pior do que mantê-los vazios... Ele pegou a estrada.... Há dez anos suas palavras já tinham uma dose da sombria figura em que se transfigura a muitos olhos... Pesadas palavras e atitudes na pressão de uma decisão a ser tomada... Ele tinha quase tudo e, ao mesmo tempo, não tinha nada... Eram feitas de ausências as suas tardes de domingo... Ele não plantava árvores, mas metia-se a plantar ideias... Na curta tolerância com que se relacionava com alguns, o oposto da docilidade com que me falava de quimeras, sonhos, viagens e eternas esperas de avião para ilhas mágicas em que magos e musas pudessem viver em harmonia e ser aquilo que são... Seja lá o que realmente fossem... Mesmo que eles mesmos não soubessem e mesmo que "realmente!" fosse apenas uma palavra grande demais para se encaixar ali... E quando falou em sincronicidade, lembrei que ela é uma metade de mim... e ele, talvez, tenha se perguntado: "mas afinal de quantas metades se faz essa ausência?"... E eu que nem pude perceber que toda vez que ele me disse "tchau amor" perdia-me como tola em largo sorriso... satisfeita e feliz e segura como nunca... agora caminho olhando para o chão para perceber que, quando faço isso, tenho a impressão de estar em uma esteira... andar, andar e andar e não sair do lugar... Preciso dizer ao cavaleiro negro de distante figura... De que vale andar e andar e correr e trabalhar se não se parar para olhar a paisagem? É como estar na esteira em sua própria estrada... Acelerar os passos e contá-los baixinho, ver a terra ou o cimento movimentar-se por baixo de seus pés e sentir que o movimento não leva a qualquer referencial diferente daquele de antes... Então, meu qualquer José distante, que não quero chamar de "amor" sem ser ao ouvido... Se é pra caminhar muito rápido, eu o parafraseio "paz e paciência"... Olhe a paisagem e, se ela for feita de zumbis, corre pra casa que eu te escrevo uma paisagem de paz e de sorrir, mesmo que eu mesma não faça do sorriso a minha felicidade... E ele gastou seus olhos lendo e relendo e refazendo e contando e estudando e trabalhando... Quando os olhos agredidos já não mais conseguiram controlar, a cabeça cansada reclamou da exploração... O cansaço derramou-se em dor e o ambiente tão branco em que o líquido incolor banhou suas veias foi apenas uma consequência de um descuidar ou de um agredir desmedido... Ainda existe, lá fora das paredes do quarto de dormir, uma multidão de zumbis... Mortos vivos... vivos mortos... Por opção ou por omissão diante da própria vida... Existe uma avenida lotada de carros, cujas buzinas eu ouço daqui... Lá fora existe um mundo, mas meu mundo existe dentro de você... Ele era tão forte ou tentava aparentar.. Que metade de tudo o que sentia disfarçava-se de fuga... Olhou nos olhos negros pela primeira vez e relembrou do calor do lar abandonado há tantas vidas... Transfigurou-se em belas frases e palavras e fez surgirem as sensações... Perto demais da capital dos homens sós, ele faz acreditar que a chegada não tardará e que haverá um infinito esperando por dois dias de paz e abraço e paciência partilhada... e Trabalho... Não sei mais dizer se ele trabalha para viver ou vive pra trabalhar, mas sei que onde quer que esteja deve viver pra entender que tudo que hoje ele cuida é porque eu ainda não posso cuidar...

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