quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Amor em pares: Sobre Laura e Arthur III

 

Era Tarde de Outono...

Laura ainda lembra como se fosse hoje, o primeiro dia em que o viu. Havia poucas pessoas naquele sepultar e um rapaz de roupas amarrotadas e olhar confuso. Ela viu a chuva chegar enquanto ele corria avenida afora. De alguma forma, a dor que transfigurava o rosto do homem-menino tocou a sua alma. Aquela sensação de que a dor do desconhecido que corria pela chuva era tão sua, não a abandonava. Laura pensava nas suas próprias dores e nas feridas ainda abertas. Ela lembrava do grande homem a quem não abraçara o suficiente. O rosto se contraía e a dor lembrava aquele semblante de menino em corpo de homem. Dias e semanas numa busca incessante por um objeto desconhecido e a alma em constante fuga. Ainda era outono, quando ela pôde entregar-se à trivialidade dos afazeres diários e retornar aos seus amores... Ela podia perde-se em meio a tantos mundo dentro do mundo, a tantas imagens dentro das imagens, a tantas vidas mal vividas.Quando abandonou tudo o que preenchia as gavetas do existir, mas ainda lhes mantinha vazias, tudo que Laura tinha ainda era uma grande pequeno pedaço do homem distante. Um retrato, um botão, um isqueiro gasto em uma caixa de recordações que tinha ao seu redor anéis de fumaça. Os anéis eram parte da imaginação. A caixa de recordações e o odor de cigarro, não. Seus fantasmas eram feitos de cinza, pois a vida os incinerou. Ela mal sabia... Ela nem sequer queria... Ela não podia mais pensar. Quando a tarde de um resto de outono, caiu nublada e chuvosa, fazia frio. Ela fechava as cortinas para se retirar dali, quando viu a transfiguração de sua dor atravessar a porta. Laura soube... Ela simplesmente soube, que a sua mão não poderia nunca abrandar aquela dor, mas que o seu coração sentia igual. Arthur tinhas olhos fundos e o rosto ainda mais pálido do que no dia em que se despedira do pai. A barba por fazer sombreava a face e o olhar de calmaria tinha dor guardado em si. Com passos leves ele se aproximou do balcão. O olhar atravessou o breve espaço de um instante e ele pôde ver na pequena moça de cabelos negros e pele branca, um pouco de si. As dores se amaram à primeira vista, mas o desconcerto varreu os gestos... O olhar tornou desnecessário as palavras. O envelope pardo que Arthur trazia nas mãos foi entregue à Laura...As pontas dos dedos se tocaram sem querer e os dois souberam que a tarde nublada era um envergonhar do sol. Ela entreabriu o envelope e nele havia um retrato desgastado pelo tempo e pelo descuido. Na imagem desbotada uma mulher de vestido florido, com um menino no colo, em frente a uma janela. O rosto da mulher do retrato tinha o peso do mundo, os lábios sorriam sem prazer... Tinha ombros caídos... Laura olhou para o homem a sua frente e para o menino da fotografia. A alegria dos olhos não era a mesma, mas as feições denunciavam a identidade. Ele entreabriu os lábios e as frases curtas deixaram perceber o desconforto que ele sentia ao falar a uma estranha. O pedido era simples. Ele viera encomendar a pintura do retrato, mas queria fazê-la em uma de suas paredes. Laura retrucou afirmando o alto preço da empreitada. Em resposta, o jovem homem colocou sobre o balcão o outro envelope pardo que trazia nas mãos. Este era mais espesso. "Espero que essa quantia seja suficiente para dar início ao trabalho." - Foi tudo o que ele disse antes de se retirar. Ela olhou para as costas daquele que parecia carregar o mundo nos ombros e, em seguida, abriu o envelope. Dois maços de notas empilhadas eram mais do que suficientes para pagar por todo o trabalho. Dentro do mesmo envelope havia um pequeno bilhete e nele o endereço. Curiosamente as letras de uma arcaica máquina de escrever cuja letra "r" falhava, esboçaram um sorriso no rosto de Laura. Apenas um esboço e nada mais. Porque ela desaprendera a sorrir. Com a quase esperança de vê-lo dobrar uma esquina qualquer, caminhou até a porta. Não havia mais sinal dele. Mas ele deixara pegadas no retrato envelhecido, nos envelopes usados, no bilhete falhado e no olhar circulado de olheiras, que inquieto esperava as palavras despejarem-se. Era tarde de outono... Fazia frio... Tinha chuva... Mas, quem liga para as tempestades, se elas são um estado de espírito? Quem liga para as dores quando elas estão em pares? 

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Havia tristeza nos olhares, mas a tristeza não era um lugar comum... A tristeza era um rito de passagem para o encontro de olhares que fez o sol se envergonhar e a chuva cair.

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Em uma casa antiga qualquer, um homem-menino demorou a dormir naquela noite. E o motivo da insônia não era o barulho da chuva. E o motivo da lágrima não era a dor de outrora... O sonho foi breve e tinha cheiro de tinta fresca, de retratos antigos, de olhos negros... E de dores que se encontram em fins de tarde de outono...


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