Bailarinas e Maracujás
Às vezes eu sonho, em outras, nem durmo... Mas, pesadelos e preocupações são presenças constantes, há dezenas de dias, há pares de meses, há sei lá quanto tempo... Perco a noção deste número calculável todos os dias, mas nem posso mensurar o que se vai com cada parte de mim que pensa demais enquanto os grãos pequenos de areia vão escorregando lentamente na ampulheta... Noite passando quente e eu sonhei... Fazia tanto tempo que as imagens despejadas em estado de dormência não eram sonhos e, sim, confusos pesadelos de alcançar braços distantes e mãos quentes que caiam... Fazia tanto tempo que eu não sorria de manhã cedo... Tanto tempo que eu pensava em procurar um passo de dança para relutar a minha queda... Fazia tanto tempo que eu adormecia com medo de um novo pesadelo... E os maracujás vieram acompanhados da imagem de Clio que eu tenho perdida em algum lugar da tela mágica... Sonhar com maracujás pode parecer uma estranha situação para quem não me conhece e não conhece a minha nada amistosa relação com a dita fruta ácida. Mas, eu e os maracujás experimentávamos em sonho uma relação em par... Experimentar maracujás, só porque os detesto e não suporto nem mesmo o seu cheiro... Esse deve ser um daqueles exercícios para fazer a paciência reinar no coração aflito, afoito, que se alegra e comprime, e se contrai e às vezes precisa voar por telas mágicas e encontrar palavras distantes... Tem tudo pra que eu comece a experimentar paulatinamente, maracujás, por lógica, de tanto gostar de frutas ácidas o dito maracujá, talvez, caia em meu gosto... Os diferentes sentimentos, sentidos e palavras escorregam macios, dentro e fora de mim... Sei que dentro de mim, para além daquilo que parece mágoa, ainda está vivo tudo o que havia antes das tempestades de areia, chuva e gelo que se derramaram sobre meus sentidos... Não consigo não sorrir diante da imagem de anjos negros... Eles fascinam meus olhos de sonhadora... O sonho tem cortinas e janelas lilases... O sonho abre as portas e janelas que eu pensei ter fechado para sempre... A alma estava arredia, mas já não pode estar mais... A noite está quente e a vida segue tranquila, quase leve... Posso sorrir... O homem de branco na tarde do primeiro dia útil da semana diz que tudo dará certo... E no dia útil que finda a semana o ciclo de químicas intravenais cessará por algum tempo... E eu rezo, mesmo sem acreditar em um Deus... Rezo para que este tormento vá embora antes que os cabelos abandonem a moldura do rosto e eu sinta-me desfalecer nessa circunferência de fatos que rasteiram meus passos... Estou a ponto de acalmar o espírito... É apenas uma questão de tempo, paciência... Espero e escuto os tic-tacs do relógio, porque eu sou assim... Sempre fui... Muito mais ternura, leveza, poesia, amor... Muito menos rancores, mentiras, desavenças, ofensas, jogos de ferir... Porque sinto poucas vezes, mas poucas vezes que se estendem por vidas... Sou barco de poucos portos, que confia no destino de sua navegação... Não desejo explicações, nem desculpas, nem prisões, nem ódios... Quaisquer que sejam as feridas que agora fazem alma de criança prender-se em mim... Eu bem sei... Com o tempo eles se dissiparão... Mas, tudo o que é amor... Tudo o que é saudade... Tudo o que fez sonhar a noite... É tudo o que completa estas estranhas frases sem sentido...
"Precisamos acordar todas as manhãs com o olhar brilhante, mesmo que haja chuva, renascendo de todo o passado, pois o presente é o tempo de amar, é o tempo de viver, de perdoar e de ser perdoado".
Moacyr Scliar
Moacyr Scliar
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