quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Existia um Amor. Duas pessoas existiam. E agora? #1


Facas Cegas

         No dia em que Peter disse que Mary era normal em sua vida, ela quebrou a perna. Jurou a si mesma guardar anedotas a sete chaves... Percepções vagas de fins de tarde... Tanto que pensava demais e fazia questão de esquecer-se de anotar. “Veja bem, Peter, cravos que você nunca irá colher... Mais ninguém... Pois, Mary era mulher de palavra.” Gente balança o erro como se fosse uma criança. Algum vento passou e disse que era para eles terem dado certo antes, mas Peter sabia, já tinha lembrado que depende da hora. Mary falava de cúmulos: aquilo tinha que virar lenda ou pararia no boteco da esquina. Era o fim, criança, era o fim.
          Os dois assistiram Spider-Man na sessão de terça-feira. Tão incompatíveis que doía só de olhar. Era Mary quem vivia nos ares, quem gostava de ser atacada, colocada à prova para não ter que dormir. Tipo de pessoa madura que ia ao chão no final de cada estação. Peter encenava e beijava de cabeça para cima, esquecia-se de guardar os pontos fracos de Mary, dormia quando dava sono. A lenda violeta era deixada para depois, embalada no infinito, sem ponto gravitacional.
          Mary se arranhava por saber que ficaria escondida pelo tempo que desejasse. Depois do ápice, em que Peter pingou uma lágrima em sua mão pela quarta-vez, ela se colocou atrás da porta. Destino também é se perder. Ela engolia o choro e deixava a campainha do celular no volume máximo. Passavam quase uma semana sem se falar. Ela olhava pelo vidro da janela e via, de vez em quando, a sombra dele, do coração tranquilo que quase sempre a entendia, mas que a deixava passar. Ela sabia que sim. Sentia nos olhos a mesma tristeza, a mesma solidão de outra alma que vivia para cortar os pedaços de verão. Os dois deixavam recados nos muros toda vez que se encontravam, mas, apesar de tudo, não queriam - ou talvez não pudessem - se descobrir.
          “Ah, Peter, quem será que entendia o fato de Mary rasgar papéis quando você satisfazia as vontades dela?” Era sempre ela quem o procurava, pois ele também não tinha coragem de perturbar aquele silêncio que ela carregava. Mary fechava as cortinas e ficava um dia inteiro sem comer porque teria que sair descalça, e o piso frio lhe causava repulsa. Peter tinha umas mortes na família que ninguém mais comentava. Soltava aviões e mandava correios de voz com música da própria autoria, mas nunca concretizava nada do lado de Mary. Deixava na metade, porque a amava demais, porque tinha pavor da felicidade que gritava de longe, ameaçando dar nó na chuva caso ele fizesse diferente com Mary.
          Ele se distraía com outras mulheres, porque Mary precisava ser deixada de lado para ter sua independência reafirmada. E então ela pedia por outro amor, um que a irritasse, que a chamasse para perto, fizesse um passe de balé crucial, que a tirasse da própria órbita. Que não inventasse normalidade onde não havia, pois ar sempre pesava mais depois da meia-noite de um discurso arrastado. Os dois nunca precisaram se segurar, se confortar, eram ácidos demais para regar um jardim. Tudo muito intenso no pensamento de Mary, tudo muito articulado no pensamento de Peter. Mas ambos andavam soltos no inverno, e não voavam, não cantavam, eram apenas transeuntes de uma rua deserta onde ninguém conhece ninguém porque ninguém encontra ninguém.
          Gostariam de poder dizer que eram certos e reais, que dariam um jeito naquela lâmina, a que cortava o cabelo de Mary quando ela deitava sobre o peito de Peter, a que rasgava a manga do casaco de Peter quando ele cogitava protegê-la do frio. Não foi possível dessa vez. Ela ligou o aquecedor e escreveu dizendo estar com a sensação de que tudo era leve demais para ela, que ela também pensava em colocar as dores dele no campo de suas responsabilidades. As mãos tão quentes como nunca, Peter ficou calado e querendo falar que estava pesado demais, era cautela demais, era cálculo demais. Deram o beijo mais demorado sem trilha sonora que já se viu no mundo. Falaram adeus com os olhos e souberam, lá no fundo, que eram uma lenda.
          Mas lenda de amor também cabe em conversa de boteco, e isso é coisa para quem tem mais coração que cabeça. Coisa para quem é assim, feito eles, bordados de dúvidas e fraquezas dentro de uma esperança falida de que, um dia, o amor chega. Basta limpar as cortinas e soltar aviões de olhos fechados.


"Para meu irmãozinho, que eu cuido de longe" 




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                                                                                          Leia mais: Antes que o tempo acabe

19 comentários:

  1. Seja bem-vinda a este time que começa a constituir-se... O Noites de Outros Dias já não é mais um exército de um homem só... Sinto-me honrada com a sua presença...

    Abraço...

    Texto encantandor, Ana...

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  2. Ficou lindo, vou acompanhar, ate que a falta de internet nos separe.

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  3. Ótimo texto, Aninha... Sempre me impressionando... Ficou lindo... ;*

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  4. Ana, teu texto tem um problema... É SEMANAL!!!!!! Baita vontade de ler mais!!!! heheheheheh

    Muito bom, guria. Faz a gente colar nele até o fim!!!!

    Mega Aprovada!!!!!

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  5. Ô gente, obrigada mesmo pelo carinho, espero que continuem lendo e continuem gostando!
    Queria agradecer MUUUUTO, Darla, por você me conceder o espaço.

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  6. Está muito muito muito lindo, Ana. Você é super talentosa e eu tenho muito orgulho de dizer que a conheço.
    Bom saber que você está explorando muito bem esse seu talento e compartilhando com todos essa sua sensibilidade incrível.

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  7. Legal '-' Gostei mesmo :)
    Esse texto descreve a realidade entre duas pessoas que não passam de mito..
    Um amor que Já mais seria possivel..
    Um quer proteção..
    O Outro que ser espaço..
    Muito bom.. UP'

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  8. Cri, adorei o seu texto, que orgulho! Continue assim, viu? Tocando toooodo mundo com essa sua sensibilidade! (Layanne)

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  9. lindo lindo lindo irmã!
    Como já foi dito, vou acompanhar ate que a internet nos separe !

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  10. me tocou aqui ana kk . parabens , até eu que nao sou nenhum adepto da leitura curti muito .. muito bom !

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  11. Ana , incrivel !
    Divulguei porque ta muito incrível mesmo!

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  12. Nossa, muito lindo mesmo! Parabéns Ana! Vou estar aqui sempre acompanhando seus textos... Continue assim!

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  13. Essa é a baixinha que eu conheço, sempre escrevendo impecavelmente. Parabéns Aninha =D

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  14. Agora entendo porque a Darla se ausentou por uns dias. Estava preparando uma boa surpresa. Além de escrever maravilhosamente bem ela ainda trouxe outra pessoa tão sensível quanto ela pra nos dar o prazer de uma leiruta agradabilíssima. Parabéns Ana Clara! (Rosa Maria Mendes)

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  15. Parabéns, Aninha! Adorei! (Lorena P.)

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  16. Rosa... Um espaço de palavras meu, apenas para aqueles em quem confio palavras e em cujas palavras confio... Aguardando a próxima semana com a mesma ansiedade, Maurício...

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  17. Desculpa mas minha mãe é FODA . Foi lindo Ana *--*

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