quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Existia um Amor. Duas pessoas existiam. E agora? #2

 
Em vão

Ele abriu a porta no mesmo estilo largado de sempre, de samba-canção e pés descalços, o vinil tocando no fundo da sala enquanto uma mão segurava o cigarro e a outra girava a maçaneta. Olhou a moça despreocupadamente, a chuva caía forte lá fora e tudo o que ela tinha para se proteger era um casaco sujo e completamente molhado. A água escorria pelos cabelos e pelo rosto dela, que tremia os lábios de tanto frio e abraçava o próprio corpo numa tentativa inútil de se proteger. Ele apenas soltava a fumaça entre os lábios. Encararam-se por muitos segundos, como se não houvesse urgência alguma para fugir do temporal.
- Você me deixa entrar? - Finalmente disse ela. Sem tom de súplica, sem querer despertar pena ou asco. Disse por dizer.
- Não quer que eu saia também? - Tragou mais uma vez a nicotina.
- Não, tem espaço suficiente para nós dois aí dentro.
- Por que você precisou bater na porta? Perdeu sua chave, foi?
- Você continua o mesmo porra-louca de sempre, não é, Luís? Atende a porta nesses trajes, a casa ainda está com cheiro dessas drogas de supermercado, aquele disco deve ser o mesmo que está com a quarta música arranhada, já sei tudo. - E a tempestade ainda escorria furiosa, caindo sobre a mulher, gotejando fraco nos pés de Luís.
- Eu estou na minha casa, Elisabeth. E você não é bem-vinda aqui. - Seco e breve, queria fechar a porta e proteger seu lar, sua alma, sua paz.
- Engano seu, meu bem, essa casa ainda está no meu direito, conseguimos juntos. Você deveria me agradecer por não querer te expulsar daqui!
- Porra nenhuma. Elisabeth, não me tire do sério! Vá embora ou então me deixe ir. Você sabe que não estou blefando. Não tenho medo, garota, sei como me virar. Já chega dessa palhaçada. Pode entrar. Entra e deixa de morar no seu apartamento do bairro imbecil de ricaços! Hein, Elisabeth, você vai fazer isso, vai? Você é uma burguesa muito escrota. Não aguento pirraça não, quem você pensa que é? - Virou-se para dentro de casa bruscamente, irritado como em todas as vezes que ficava conversando com Lisa por mais de dois minutos. Caminhou para se distanciar da moça, quando justamente o disco, que estava na quarta música, começou a travar.
- Mas que inferno! - Tirou o disco e o jogou de lado, na peça em que ficava o aparelho de rádio.
Elisabeth observou, colocou os pés para dentro da casa. Fechou a porta, encharcou o piso de madeira com a água que escorria do seu corpo. O silêncio era tudo o que os unia por agora. Palavras eram meras discussões:
- Eu não vim para brigar...
Luís respirou profundamente, os olhos eram chumbo puro, caindo e mirando o chão, vendo a água proveniente de Lisa pronta para manchar o piso. Jogou o cigarro aos pés dela. O fogo apagou-se. Apagou-se:
- E nem para se apaixonar, espero. 
- Luís, você sabe muito bem! Você sabe Luís! Eu ainda gosto de você, me perdoe, eu não quis te humilhar daquele jeito, não quis que você se envergonhasse na frente de toda aquela gente. Eu sei que sou uma idiota, mas você também faz por onde, Luís! Você poderia mudar de vida, eu poderia te conseguir coisa muito melhor, e...
- Cala a boca, cala essa boca, por favor. - Mas foi um sussurro baixo, quase dolorido, quase arrancado, de tão difícil que era lutar pela dignidade que ele ainda guardava. - Se você não veio para brigar, está fazendo o contrário.
Ela se calou. Sentia respeito por ele, ainda assim. Mas era um traço que ela não conseguia tirar da própria personalidade, era um amor que não conseguia sobrepor a oposição entre os dois.
Ele se aproximou. Segurava lágrimas duras e inacreditáveis. Os rostos ficaram próximos, Elisabeth virava uma pequena menina indefesa, Luís virava um ser rico de encantos. Beijou os lábios de sua ex-dama com delicadeza. Eles não se possuíam, eles não se confiavam. Haviam espinhos e venenos nas bocas, e elas se tratavam como se estivessem às escuras, reconhecendo um caminho tortuoso, saboreando o que pode ser uma sobremesa mortífera. Esqueceram-se porque é necessário esquecer pelo menos por um minuto e deixaram brilhar em primeiro plano o sentimento bonito que ainda lhes restava. Mas também se lembraram. Luís desfez a magia do encaixe dos lábios assim como a tinha iniciado. Luís era, sim, um rapaz de palavra:
- Vá embora, Lisa. Eu não mudarei por você. Eu não mudarei nem se eu tiver que me salvar. Nem você mudará por mim. Nossa convivência é insuportável. Os beijos não sobrepõem os gritos no nosso caso. As noites de amor não superam as mágoas. Comigo você nunca estará sossegada. Nem eu estarei sereno contigo.
Ela quis falar, quis se defender, quis lutar pelo amor que morava dentro deles. Mas era verdade. Cruel e carrasco fato real. Aninhou-se no abraço dele. Deixou lágrimas contaminarem aquele pescoço. Não queria mais sair dali. Eles existiam, e por existirem não eram capazes de desprezar os erros. Existir lhes custava o amor perfeito. E eles haviam pagado o preço alto. Haviam nascido destinados ao errado. Haviam vivido aprendendo os contrários. Finalmente desenlaçaram-se. Ela não deu uma última olhada, um último sorriso, um último perdão, um último eu te amo. Mas foi um último adeus. Abriu a porta, se jogou na chuva, fechou a porta. Luís olhava o chão molhado. Água sem Elisabeth. O choro de Elisabeth em seu pescoço. Mas a mesquinharia de Elisabeth lhe apunhalando as têmporas. A sala silenciosa como nunca. O silêncio de um amor que não supera o mal não é resolvido, nem se o vinil tocasse outra vez.

"Para a melhor amiga que a vida me mandou".




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12 comentários:

  1. MUITO BOM!!!!! Sigo dizendo... Tem ritmo e nos suga pra dentro do texto. Ainda vou ler um livro teu, guria!

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  2. "Para a melhor amiga que a vida me mandou".
    espero que seja eeeeu !!!
    lindo como sempre meu anjo.
    e me explica... aonde aprendeu palavras dificeis ??

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  3. Texto muito lindo! parabéns!

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  4. triste e lindo
    rubs aqui (:

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  5. Aê aê aê
    Mais um post lindo da Ana, só pra viciar a gente na série. Eu eu já estou, com certeza.
    =)

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  6. Ficou muito legal. Bem se continuar assim dará uma grande história. Meus Parabéns.

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  7. Aou gente, MUITO obrigada pelo carinho, mais uma vez.
    Júlia, você sabe muito bem que você é minha melhor amiga, nem sei por que perguntou.

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  8. Como sempre, você consegue atingir a perfeição. Tenho muito, muito orgulho de você, Ana. Não só pelos contos produzidos (...)

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  9. Simplismente perfeito, como sempre... Quase 6 meses que te conheço e a cada conto você me impressiona mais... Muito bom, Aninha, querida ;**

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  10. Amores que são, sem nunca terem sido. Muito bom ter você por aqui, Ana. Parabéns pelo texto e pelos leitores.

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  11. Atrasei né, mas não quer dizer que não gosto.

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