segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Prosas que o Mundo dá XXVII

 

A véspera do abandono...

Não dá pra dizer que não é segunda-feira, porque chove... Como chove em todas as segundas-feiras desde que cheguei aqui... Mas, hoje, com um peso incomum os pingos tem jeito de despedida e a alma que se perde a contemplar os raros fios de cabelo branco no espelho, agradece... O campinho alagado atrás da escola agradece a penúltima vez em que eu o olharei com poesia.  Tem verde por tudo, mas as paredes quadradas, cartesianas, tão claras, já não são capazes de prender a alma. Na rosa-dos-ventos estampada na parede a sonoridade dos trovões e das crianças. Em alguma sala qualquer, a peça teatral se desenrola. O homem falastrão tem palavras, gestos e olhares... Despeja piadas e gesticula o tempo todo. Em todo o tempo não há face ou olhar que esconda o que há na alma. Algo nele reflete em meus cabelos brancos que foram espelhados. Mas eu não lembro se vi primeiro a brancura ou primeiro o profundo olhar. Algo no ator tem a alma em dor e a pele em flor que retenho em meu ser. As meninas, moças, mulheres sorriem e falam o tempo todo, mas o espírito guarda fantasmas, sombras e guarda-chuvas em dia de temporal... Elas tem uniforme fluorescente e alma repartida em pedaços... O cenário muda e do abrir e fechar de cortinas, o mundo é uma gota de chuva maior e eu enxergo poesia no mundo e o mundo em poesia. As paredes verdes com cara de hospital, os automóveis sucateados, os muros abandonados, poluição visual... O mundo é o meu quintal de poesia, a poesia é o meu mundo sem quintal... A água barrenta na beira das ruas, estradas esburacadas, histórias despedaçadas pelo tempo. A escola e a esquina são peças do mesmo jogo. A rua pavimentada e vazia, respinga gotas de chuva e retêm calor... 

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Novamente o cenário muda... O carro chegou ligeiro demais e os meus passos eram lentos... No instante em que o frear agride os ouvidos e o corpo é arremessado, eu vejo flashes do que ainda não fiz ou fui passando em minha mente em preto e branco, como um filme antigo. O corpo fora do corpo observa a figura de uniforme berrante e rosto pálido. O amarelo do moleton contrastando com o cinza do asfalto. Os pés calçados, a lama nas solas... Lamentável constatação de que eu ainda observava os detalhes em meio ao caos da situação... Meus olhos tentando livrar-se da visão embaçada... Meu corpo trepidando em nervos trêmulos... Estranho, que de tudo que poderia me vir a mente, no momento em que o alarme emanado do carro de socorro e da imobilização ligeira que sucedeu às mãos quentes que me tocaram, eu pensei no livro que ainda não terminei, nas poesias que não poderia mais escrever e no rosto que não poderia tocar se tudo terminasse ali...  Tudo se apagou e eu acordei, creio que minutos depois... Havia paredes brancas ali também... E gritos de dor... E, depois, um choro de criança ao longe... Pela janela de vidros empoeirados e descortinados de um hospital qualquer, eu vi uma senhora arrastar sua perna coxa, escorando-se à bengala e o guarda-chuva vermelho a se destacar em meio à palidez do dia... Abrem-se e fecham-se cortinas... Um novo ato da peça teatral... A caminho de casa ao lado da figura paterna, eu sinto culpa... Culpa por, em meio a tantos universos e tantos possíveis apegos, não ter sentido o óbvio para se sentir... Culpa por sentir mais medo de perder o que ainda não tive do que de abandonar o que já tenho... Tem chuva lá fora, trovões... Gotas doloridas de existir aqui dentro, mas a minha alma leve ainda se encontra, permanece, respira... Em outro compasso, espera o abraço, que desejou mesmo quando sentiu-se morrer sem verdadeiramente estar morrendo. A água correndo da calha despeja em correnteza falha, um pouco da água que chiou baixinho em meu ouvido por toda a manhã. Os dias reduzem o tempo. Semana que vem a escola de campo alagado e paredes de aprisionar, será apenas uma parte das lembranças, mais uma peça nas histórias... O homem de palavras fortes e olhos tristes em seu presente teatro vivo, fará parte do esquecimento onde tantas personagens já admiradas se encontram. A véspera do abandono da fluorescência do uniforme será para sempre a lembrança do atropelamento...

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