terça-feira, 1 de novembro de 2011

Amor em Pares: Sobre Laura e Arthur XVIII


 

Fragmentar Ausências

A viagem de destino incerto predestinava um futuro indecifrável... Não haveria um instante sequer em que o medo de ser devorado pela esfinge de qualquer terra distante não fizesse o coração da menina, moça, mulher pulsar ainda mais descompassado... Tentar adivinhar as possíveis combinações numéricas de um caminho previsível era atirar na escuridão de olhos vendados... As palavras deixadas naquela última página escrita do diário engavetado pareciam não fazer o menor sentido. Era tarde e fazia frio... Aquele frio de vento europeu que corta nos fios de alta tensão e assovia agudo, como corda de guitarra tensionada no extremo do extremo de uma distorção adequada ou não... Laura treinou, ensaiou, mediu os pés e os passos em cada paralelepípedo... Contou e recontou as placas, as árvores, as folhas, as janelas das casas, os olhares que cruzaram o seu... Era tarde demais para não sentir coisa alguma... Era cedo demais para dar adeus ao grande homem, agora, velho... Era cedo demais para abandonar o eterno outono de Arthur... Cedo ou tarde?! Quem realmente se importaria com seres, universos, palavras, gestos, amores atemporais? Laura já fora menina em um tempo remoto do qual não restara nem retrato rasgado, apenas lembranças perdidas... Fragmentos... De olhares cruzados com os do grande homem que ocupava, agora, o sofá rasgado no desconforto sombrio da sala de estar... A mochila preta caída ao ombro, no pálido quadro de roupas negras, de jeans surrado, de tênis rasgado. Unhas, olhos, palavras, músicas ao fone de ouvido, tudo era tão negro... Parecia apenas uma menina vestida de tristeza em silencioso discurso de revolução... Parecia apenas uma rebelde sem causa... Parecia tudo o que nunca quisera parecer... Porque nem sempre o que parece é e, às vezes, as cascas podem enganar os pontos de vista das vistas de cada ponto distinto... Deixava estremecer os lábios, quando as lágrimas indesejadas transbordavam a fúria de uma despedida forçada... Ela sempre ouvira falar que os cães, quando sentem que o seu fim está próximo, isolam-se do mundo, afastam-se do lar, deixam para trás as pessoas queridas... Ela sempre acreditara que os cães faziam isso por querer que aqueles a quem dedicavam qualquer apego não os vissem definhar... Ela sempre acreditara que em nome de um sentimento um ser vivo polpava o outro do sofrimento da perda... Laura sentia-se, agora, uma parte de um animal querendo evitar que as suas dores físicas causassem a agonia aos seus queridos anjos. Anjos de estranhas faces a bem que se diga... O velho definhando a cada anoitecer nos anéis de fumaça... O jovem magro e cinzento na véspera de uma espera que nunca cessava... "Nunca" era muito tempo... "Sempre" era tempo demais... Na parada do ônibus, Laura começou a se dar conta de que ao sair às escondidas, talvez ela estivesse causando ainda mais feridas internas a quem queria bem... Mas, o barulho chiado do grande veículo parando à sua frente, combinado ao apito das engrenagens ou de sei lá que partes do grande meio de transporte, fez os pensamentos cessarem e darem lugar a um mundo de pequenas borboletas a voarem dentro em seu abdomen... Era uma ansiedade, misturada com vontade, misturada com medo... Era o primeiro passo degrau acima, era a primeira chance para a vida descer ladeira abaixo... Era a primeira vez que ela dava a si mesma a chance de respirar, de sobreviver, de viver para poder voltar a um lar... Feririam agulhas e líquidos, mas como presente maior viria com a dor, o sorriso na face do rapaz acinzentado, que desejava retratos antigos em paredes estranhas e máquinas de escrever, na era das modernidades mais excêntricas... Ela só queria ter um lar para o qual voltar... De alguma forma, bem ao longe ele se projetava, como sonho de um pote de ouro no fim do arco-íris... Era só calçar as botas que faziam de cada passo, sete léguas adiante o seu corpo alcançar... Podia ouvir as cantigas da infância ou o disco chiado de Arthur... Viesse de onde viesse o misto de números, anéis de fumaça e olhos flamejantes era um sinal de que a vida era para ser vivida e para ser conquistada e a que cada esquina que se dobrava um corpo cansado não podia fazê-lo... Era apenas uma questão de tempo... Fazia primavera, fazia frio, faziam-se cair pequenas flores, folhas, pétalas... E eis que em um fim de tarde de qualquer estação, que para Arthur sempre fora outono, ela respirara mais profundo e fora buscar a vida que queria escorrer por entre seus dedos... Acima de qualquer vontade, acima de qualquer começo, acima de qualquer saudade, era hora de reagir...


6 comentários:

  1. Muito lindo, Darla. Como sempre, toca minha alma.

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  2. Impressões recíprocas, então meu anjo... Aguardando ansiosa pelo dia de amanhã e pela sua estréia...

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  3. Minha bela... Sempre belas palavras, sempre belas textualizações. Já sentia saudades! Continue presenteando meus dias com suas palavras.
    Abraços,
    Pro. José Antônio

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  4. A renovação das palavras? A renovação dos sentidos? A pulsação dos sentimentos ainda faz com que me apaixone todas as vezes que paso por aqui.

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  5. Prosa, poesia, versatilidade. Em quantidade e qualidade você escreve muito. (Rosa Maria Mendes)

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