terça-feira, 8 de novembro de 2011

A Força do Silêncio XVIII


Margens de Vida

Nas grandes capitais um emaranhado de confusos enfileiramentos em comum. Em plena Florianópolis, ruas estreitas, ruas tortuosas, carros enfileirados, vidas encaixotadas... Em plena Ilha, onde há tantas pessoas convivendo com as outras, aquela premissa de 'nenhum homem é uma ilha', cai por terra. Todos se trancam em seus caixotes de metal, em suas caixas de cimento... Todos se escondem atrás de suas vidraças: algumas coloridas, algumas escuras, algumas para ver melhor, outras apenas para embelezar a moldura do rosto... Todas, sem exceção, camuflando o olhar ou protegendo-o do Outro. Estamos tão certos de nossa condição de superioridade, ou pensamos em estar, que não é muito cômodo olhar para a margem, ou o que a gente supõe que ela seja... Sempre estamos tão seguros de nossos acordos televisivos, de nossas vidas em falsas propagandas de margarina, que esquecemos das margens. Todas as páginas tem margens. Só na vida corrida que o homem leva, elas são tão poucos prezadas... Na página, margens são um delimitar, um arranjar melhor as letras no espaço, um cuidar para que não se fira as molduras da escrita. Mas, na vida... Nem sempre vivida... Margem, fica à margem, fica à parte, fica em um canto qualquer da existência... A margem é marginal no contexto de cidade... Não como a Marginal Tietê que é via, rodovia... Nada disso... Marginal, como gente que vira bicho, ou que é tratada como se fosse... A miséria humana, nas grandes cidades não pede passagem, ela simplesmente vive, ou sobre-vive... A gente vê 'bichos' por todas as margens da cidade e nem sempre eles estão na periferia... A gente vê margens no centro das cidades... Não as margens que embelezam e delimitam os textos das ciências humanas ou literárias, mas a margem dos marginais... Pessoas, como eu e você, maltratadas pela vida, agredidas pela própria história... Talvez, estejam ali por opção, uma opção nem sempre deles... Talvez, a opção também tenha sido sua, quando passou do outro lado da calçada por 'medo' de aproximar-se daquele maltrapillho sentado no gramado. É, eu sei... Sei que a gente cresce na sociedade do medo, que a gente tem mania de julgar os livros pela capa, sei que a gente sente e isso não é mensurável e, por vezes, nem compreensível. Devíamos brincar de 'Sentindo na Pele'. Uma vez na vida, cada homem deveria ser colocado no lugar da pessoa que ele mais critica ou que ele mais teme, pelo menos para sentir o que é estar no lugar do outro. Outros somos todos para alguém, Outros muitos haverão para a gente. Pessoas comuns com qualidades variáveis, defeitos, discursos, dificuldades, misérias... E como é difícil perceber as próprias misérias, as próprias margens de uma vida nossa... Como é difícil... Porque misérias humanas nem sempre estão nas margens de uma cidade, vestidas de pobreza e abandono... Misérias humanas, por vezes gritam nas mesas de homens finos e bem formados, dotados de muitas facilidades que a outros não foram dadas. Eles estudam muito e falam bonito, mas pouco lhes importam as margens. As margens da história de um homem confundem-se com as margens da história de uma sociedade inteira. Um é construído em detrimento do outro. Margens e misérias são condições inerentes ao ser humano, a sua manifestação é que está condicionada ao meio social. Teorias e práticas desencontram-se na estrada do tempo e no espaço da cidade. Por fora tudo parece ensaiar a mesma coreografia, por dentro estão todos perdidos nos emaranhados de ruas de uma capital. Por fora todos parecem fazer parte de grupos infindos e sentir-se bem dentro deles. Por fora os vidros do carro se fecham quando o homem de roupas esfarrapadas se aproxima. Por fora estão todos erguendo seus muros físicos, trancando-se em carros, escondendo-se atrás de óculos escuros, trancando-se em seus apartamentos, escondendo-se atrás de informatização e esquecendo do contato humano e  real, que nada disso pode suplantar. Por dentro e por fora, tudo é miséria, margem e marginal... Mas, está muito difícil, em dias contemporâneos, abrir as janelas para perceber que o defeito, muito antes de estar no lençol sujo do varal vizinho, está na vidraça empoeirada de sua janela.


O Bicho

“Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem”.

(Manuel Bandeira)

Nenhum comentário:

Postar um comentário