domingo, 6 de novembro de 2011

Três Pontos Negros XIX

 

Tanto faz

Eu ando meio assim... Acordando sem saber para que levantar, levantando sem saber porque caminhar... Em dias de tanto faz, todo mundo fica um pouco assim... Não sente mais nada, não lembra de mais nada, não quer mais nada... Vontade de cavar um buraco enorme embaixo da própria cama, um buraco que virasse túnel e transportasse no tempo, ou um portal que permitisse transitar por dimensões paralelas... Ando em dias de tanto faz... Quem sabe por que? Muita gente pensa que sabe, mas ninguém viu... Fica todo mundo observando a vida da gente da janela vizinha, cada observador com sua própria janela, com suas próprias traves no olho, cada um projetando em você o pó que deturba a visão que se tem por detrás da vidraça... Não tenho mais vontade de sair deste retângulo de paredes brancas, nem mesmo de organizar os livros nas estantes... Eles estão por aqui espalhados, entre roupas e outros papéis rabiscados que se acumulam. Falta vontade para colocar cada coisa em sua prateleira, dobrar cada peça em seu armário, organizar os livros por tamanho, ordem alfabética e conteúdo... Falta motivo, razão, emoção... E, então, confortavelmente anestesiada, caminhando no piloto automático, eu dou o mínimo de mim e solto farpas que eu adoraria controlar... Triste sina de ser humano... Forte por não fugir fisicamente do que agride em ausências, fraca por não ter coragem de cessar todas as faltas de qualquer natureza, calando de vez a mim mesma... Reticente eu ainda sou e tenho pontos negros, da cor que me apetece vestir... Fica fácil pensar na última linha e na última palavra, mas está cada vez mais difícil pensar em últimas lágrimas, já que sempre se renovam os líquidos salgados que transbordam face abaixo, enquanto leio sobre prisões ou admiro os olhos seus em retrato roubado. Tudo tão certo quanto dois e dois são cinco... Tão certo quanto os olhos disfarçados que todos reconhecem... Tudo tão certo quanto controle remoto que desligue a dor... Tudo tão confortável quanto não sentir... Triste constatação: em dias de tanto faz, às vezes a gente funciona como rolo compressor e sai atropelando gregos e troianos, sem perguntar a si mesmo que culpa eles tem de nossa guerra íntima com os próprios sentimentos que insistimos em não libertar... Dias de tanto faz, piloto automático... Corpos e pensamentos movimentam-se de forma independente, sem maiores aprofundamentos... Em dias assim, tudo é um imenso abismo em que as palavras alheias são atiradas, todos os caminhos são apenas vagas estradas... Em dias assim aquela imensa vontade de fazer a diferença para alguém vai se tornando indiferença até pela gente mesmo... Em dias assim o vocabulário simplifica, o amor decodifica, as frases são estendidas, as coisas que significavam algo ficam esquecidas... Em dias de tanto faz, que são vésperas de viagens e The Magic Islands, mochilas pretas nas costas e pensamentos inúteis na mente.





"Muitas estrelas cadentes transformavam-se em rastro de luz, mas a luz nunca existia por tempo o suficiente. Então, as crianças acendiam velas porque tinham medo da escuridão".

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